domingo, 4 de setembro de 2011

A família e o individuo.



Os filhos não tinham qualquer direito a uma vida privada. O tempo livre deles não lhes pertencia: cabia aos pais, que os encarregavam de mil tarefas. Eles vigiavam minuciosamente as relações de seus filhos e mostravam grande reticência quanto às amizades extra familiares.
O controle das relações dos filhos se estendia, naturalmente, à correspondência: ler suas cartas não era apenas hábito, era uma obrigação, caso se quisesse educá-los bem. Quando os filhos ficavam longe dos pais, nem por isso essa obrigação deixava de existir; passava a ser delegada a outrem: ainda em1930, as cartas enviadas aos alunos internos dos liceus deviam apresentar do lado de fora a assinatura dos pais, autorizando os filhos a recebê-las, a qual devia ser verificada pelo diretor.
Essas práticas educacionais davam aos pais o poder de decidir sobre o futuro dos filhos, sobre o futuro, em primeiro lugar, profissional. Na burguesia, são os pais que decidem os estudos que serão feitos pelos filhos. Entre o povo, são eles que escolhem o ofício a ser ensinado e colocam os filhos como aprendizes.


A Socialização da Educação dos Filhos


O desenvolvimento da instituição escolar é uma das principais características da evolução social na segunda metade do século XX.Mas é preciso avaliar a medida exata do fenômeno.
De um lado, trata-se de um prolongamento da escolaridade. De outro uma necessidade emergente, afinal como os filhos já não podem aprender um ofício com os pais, porque estes já não trabalham mais em casa, eles têm de aprender uma profissão fora.
De fato, o aumento da escolarização remete a transformações muito mais profundas; mais do que uma socialização dos aprendizados, é um aprendizado da sociedade. Antes, esse aprendizado se dava dentro da família, e esta podia ser definida com justeza como a “célula de base” da sociedade. Sob fortes pressões econômicas, ela era regida por normas que podiam ser aplicadas em meios mais abrangentes, submetidos a pressões semelhantes. Essas pressões quase desapareceram após a transferência do trabalho produtivo para fora da família. Se os pais se tornaram menos  autoritários, mais liberais, mais abertos, é sem dúvida porque os costumes evoluíram, mas também e principalmente por que as razões de impor esta ou aquela atividade aos filhos deixaram de existir. A autoridade dos pais se tornou arbitrária e, deixando de ser uma orientação dada a tarefas familiares indiscutíveis, ela passa a se exercer no vazio. Os pais de antigamente eram autoritários tanto por costume quanto por necessidade: quando vinha a ameaça de uma tempestade, eles não iam perguntar a opinião dos filhos antes de mandar recolher o feno, e é claro que alguém precisava ir buscar água, lenha etc. A necessidade fazia a lei.
A liberalização da educação faz com que a família transfira para a escola o aprendizado da vida em sociedade. A escola recebe a incumbência de ensinar os filhos a respeitar as obrigações do tempo e do espaço, a regras que permitem viver em comum e encontrar a relação justa e adequada com os demais. Na França a partir de 1959, vem se impor progressivamente a norma de colocar os filhos no jardim de infância. Antes, pelo contrário, a norma era conservá-los o maior tempo possível, e até alfabetizá-los em casa. O jardim de infância era uma saída por falta de outras alternativas, uma creche para as mães pobres que tinham de trabalhar, mas de repente torna-se preferível que os meninos freqüentem o maternal, em vez de ficarem junto com suas mães. A escolarização no jardim de infância se generaliza, e os pais das camadas superiores dão o exemplo, a começar pelos mais qualificados e mais urbanos, mesmo quando a mulher não trabalha. A opção é clara: “a escola é melhor que a família”, e passa a ocupar seu lugar.
Se a família é substituída pela escola, e com seu próprio consentimento, é porque ela tem consciência de uma incapacidade estatutária: como toda educação é educação para a vida pública, a família, ao se tornar puramente privada, deixa de ser plenamente educativa. Os pais constatam o fato a sua maneira, mais concreta, ao dizer que não sabem como entreter os filhos.


Inversão de pensamento

A transferência da função educativa da família para a escola supunha que a família reconhecesse a legitimidade e o valor das relações extrafamiliares. Considerando-se a única realmente capaz de educar seus filhos. A família antiga era muito cuidadosa quanto a amizades extrafamiliares. O movimento que generaliza o recurso ao jardim de infância procede de uma norma inversa: é bom que os filhos tenham contato com filhos de outras famílias. O aprendizado da vida em sociedade passa por aí.
A partir do momento em que os filhos têm suas próprias relações, formam-se grupos de amigos ou colegas. A transferência  da educação para uma instância pública, a escola, gera outros centros de vida privada, que concorrem com a família. Os adolescentes recusam ter seu lazer organizado por entidades estruturadas. Eles aceitam instituições como a escola porque sabem que é uma necessidade social, mas, a seus olhos, ela deriva do universo do trabalho, o mais público dentre todos. O universo do lazer, o da vida privada, não pode se inscrever em instituições que imponham regras de vida coletiva.
O mesmo problema se coloca aos pais: se fazem da família uma instituição coercitiva demais, os filhos se afastam, mas, por outro lado, a família não pode existir no dia-a-dia sem um mínimo de regras: conseguem estabelecê-las graças a acordos provisórios, manobras mais ou menos hábeis, negociações mais ou menos conflituosas.
Esse ajuste é facilitado por outra conseqüência do aumento do período de escolarização: a intervenção crescente da instituição escolar nas decisões que envolvem o futuro dos filhos. Na medida em que a escolarização dos aprendizados amplia o papel da escolaridade na determinação do futuro social, a escolha dessas escolaridades passa a escapar aos pais. O local de domicílio decide sobre escola de primeiro grau e, depois, de segundo grau que o filho deve freqüentar é a “setorialização” No segundo grau, a orientação vocacional decide sobre ingresso do aluno em determinada seção dessa ou daquela escola, onde essa orientação será obedecida. Apenas os bons alunos têm o direito de escolher; os outros seguem o que a orientação lhes impõe.
Certamente, essa transferência de encargos outrora atinentes às famílias gera conflitos. Mas embora contestada, não deixa de ser cômoda: de fato, ela transfere pressões desagradáveis para uma instância externa, livrando os pais de exercer pessoalmente uma pressão que dificultaria ainda mais as relações familiares.




O aumento do controle


A intervenção pública na educação dos filhos não se limita à escolaridade; ela se fortaleceu em outros domínios. Mal é concebida, a criança já interessa ao estado, e o serviço de atendimento materno e infantil submete a mãe a três visitas médicas antes do parto (pré-natal), caso ela queira se beneficiar dos subsídios previstos. Tem-se o mesmo acompanhamento médico durante a amamentação e o período de lactação. As vacinas são obrigatórias. Em suma com a generalização dos abonos-famílias, o acompanhamento médico da gravidez e da infância se fortalece.
Toda a educação pode ser controlada por instâncias públicas. Uma legislação complexa permite que o juiz de menores retire a guarda dos filhos de uma família para entregá-los a uma pessoa autorizada. O fato de uma autoridade pública possa confiar a educação de filhos a outro que não sejam os pais revela o deslocamento da função educativa para fora da esfera privada.
A educação dos filhos é assegurada apenas em parte pelos pais, e sob o controle do poder público. A família, portanto, deixa de ser uma instituição para se tornar um simples ponto de encontro de vidas privadas.


Texto base A FAMÍLIA E O INDIVIDUO, pgs. 80 a 87

Para saber mais:

FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir. Rio de janeiro: Graal, 1984.
­­­­­­­­­­­­­­­­_________________, Microfísica do Poder, Rio de janeiro: Graal, 1984




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